quarta-feira, 5 de maio de 2021

Vai ver, é assim mesmo

 O vaso amarelo


Não gosto de poesia, e não gosto quando o que escrevo soa poético. Me policio para que isso não aconteça. Gosto de clareza, precisão, e às vezes minúcia, pra eu lembrar o que quis dizer. No outro ano afirmei que “poesia é sentimento criptografado” e, por hora, é à isso que me refiro quando a menciono. Não é que eu ache ruim, é que não me divirto no exercício de camuflar o que falo, se quero falar. E o que os outros camuflam, nem sempre me importo em decifrar. Mas não é sobre isso que escrevo aqui. Quero contar sobre esse vaso aí em cima.

    Meu tio e eu estávamos há algum tempo distanciados física e afetivamente. Nossos assuntos, e muitos pensamentos, não coincidiam mais. Isso acontece. Até que um dia contei pra ele que estive criando plantas em casa. Uma Arruda e uma Lança de São Jorge, única sobrevivente, já que a Arruda secou toda. Não precisei de visita tóxica, ela sugou meu astral - que estava baixo. É uma pena. Também plantei milho, pra Jurema parar de mastigar plástico, mas ela não parou. Joguei fora, botei na árvore da calçada. Daí peguei aquelas florzinhas de mercado, mas não reguei com frequência. Depois um Girassol, que achei que ia durar um tempo, mas me contaram que morre rápido. Paguei 7 reais pro Girassol murchar aqui em casa, ao invés de outro lugar. Tudo bem. A casa ficou bonita por 3 dias, queria ter tirado foto. Depois virou um cemitério por semanas, até eu descer pra jogar na terra. Disso eu tirei foto.


  

 


    Contei pro meu tio sobre o planticídiopra puxar assunto, e ele me disse que o negócio era eu criar cacto. Então fui lá e comprei esse aí do vaso amarelo, em Fevereiro. Eu já tinha desistido de planta, na verdade, mas o assunto tinha dado certo. Ele falou pra eu regar a cada 15 dias, e quando regava eu mandava foto pra ele. Era legal. Ele me contava das orquídeas que estava criando. É uma planta pra quem lembra que a vida dela depende da sua. Quando morava com meu pai, deixei morrer a orquídea dele. Ela ficava de frente pra minha cama, mas fiz dela um ponto cego, não existia. Não me culpo, ele me conhece, não se coloca a vida de uma orquídea sob minha responsabilidade.

    Com o cacto, foi diferente, eu criei um vínculo. Ficava na minha estante, combinava com os livros. Quando o olhava, ele me dava o comando: manda mensagem pro seu tio. E eu obedecia. A última conversa com ele, antes dele ser internado, foi pra dizer que o cacto passava bem. O vídeo é ilustrativo, a seringa estava sem água. Só lembrei de filmar depois, mas mandei mesmo assim. 


 


    A dinâmica estava tomando forma: eu, tio Wal, o cacto, e a vó. Estávamos indo bem. Até que ele precisou ir pro hospital fazer uma cirurgia, de sucesso, apesar de perigosa. Mas aquela foi a semana pré-”lockdown”, de quase 3 mil mortes diárias, então ele não voltou. Isso me remeteu à matemática da pré-escola: cada bloquinho é uma unidade, e dentro de um número grande, cabem vários. Eu não gosto de tomar sustos. Por isso, desde 12 de março de 2020 estou à postos, fugindo da surpresa. Me protejo contando com o pior, e foi tudo de acordo com as probabilidades: mais um bloquinho pra conta. Uma merda.

    Claro que um dia, nem sei quando, olhei pro vaso e caiu a ficha: a planta é a história mais recente com meu tio, e está em curso. Ela é tudo o que tenho de nós, de agora. Das fotos eu me esquivo, é difícil olhar. Os livros, o pingente da T.A.R.D.I.S., e as outras lembranças, representam outros arcos. O tempo não é linear, o Doctor sempre diz! O nosso arco de agora é esse.  

    Um dia desses, pouco depois de você ir embora, o vaso quebrou. Quero dizer: depois que o meu tio foi embora, em terceira pessoa, porque isso não é uma carta.

    Façamos uma pausa aqui: seria poético demais escrever uma carta sobre isso, e poesia faz eu me sentir idiota. É claro que gosto de acreditar que você tem acesso ao meu texto e à minha mente, e que consegue ver o que tô escrevendo aqui - sei que é o que você acredita. O que ele acredita. Mas eu não tenho fundamentos, não li o O Evangelho Segundo o Espiritismo pra entender a dinâmica disso aí - e creio que não cheguei a dizer, mas acho irritante o kardecismo. Também não terminei o curso de teologia de Umbanda, nem li o livro que dizem que explica tudo. E agora lá pra onde eu tô indo, a passos curtos, pra entender o que eu quero entender não adianta ler livro, vai demorar.

    Camuflei, mas a questão é: o vaso quebrou! Eu estava tomando banho e as gatas derrubaram, não ouvi nada. Quando saí do banheiro ele estava lá: quebrado no chão, com a terra e as pedras espalhadas, e o cacto deitado. Eu não senti ou pensei, só encarei, parada, tentando entender o evento. O que é que era pra eu entender ali.  Não havia motivo para as gatas fazerem isso comigo. Achei injusto acontecer uma queda pouquíssimos dias depois de ter firmado o acordo com o vaso. E eu já ia entregar uma falha logo de cara? Não. 


 


    Eu tinha que trabalhar, então deixei lá, sem irritação. E decidi não assumir a culpa. Já tenho culpa demais, e aquela não foi minha. Não deixei o símbolo se virar contra mim, como de costume. Então o vaso quebrou e isso não tem nada a ver com nada.

        Somente no final do dia que fui lidar com isso. Botei o cacto num pote de plástico, coloquei num lugar mais alto para as queridas Jurema e Janaína não derrubarem. Varri a terra e as pedras, aproveitei o que sobrou, recolhi os cacos, e por fim, botei na lista de compras um superbonder. Um dia eu colo. Até lá, ele fica ali no pote mesmo, junto com as plantinhas que a vó separou pra mim, e que você mandou foto falando pra eu buscar. Que ele mandou.


 


    Ela separou logo depois que eu fui lá ver vocês - que fui ver meu tio e minha vó - e fiquei no corredor das plantas falando contigo - com ele - pela janela.

    Aliás, não sei pra quê serve aquela janela, se não for pra te ver. E naquele dia eu te vi pela primeira vez, desde o início da pandemia, e pela última vez na vida.

    O aperto no peito ao ir embora não foi sem razão. E sim, eu poderia ter ido lá buscar as plantinhas naquele final de semana que marquei na agenda. Mas tive um sonho estranho no dia, e mais dois ou três motivos pra não ir - como em tantas outras vezes. Acabei indo semana passada, quando meu tio já não estava lá, e estava tudo escuro.

   Se formos ver, é assim mesmo.

    Foi natural lembrar daquela música do Titãs, Epitáfio, que diz que eu devia ter feito mais de tudo. Não quero ser rude, mas não acho. Se devia, não é em razão de versos que não escrevi. Eu nada tenho a ver com eles, se formos ver. E é por isso que tô aqui me registrando, sem camuflagens, que é pra ninguém se identificar.

    Mantenho vivo o cacto. Ele é o arco. E, ciente de que um dia posso perdê-lo, firmo um novo acordo: cuido dele, tomando cuidado comigo - à postos. Não gosto de tomar sustos. Mas enquanto eu tiver minha vó pra falar de plantinhas, estaremos em curso.

    Te amo, tio Wal.


Lilian R. Antonio